mercoledì 7 luglio 2010

MALIGNA- Giselle Sato






Quando voltamos da feira, cada uma das minhas meninas tinha um pintinho nas mãos e discutiam os nomes que iriam dar às bolinhas de penas. Todas pediam caixas de sapato, panos e faziam mil perguntas:- Mãe, o que ele come? Posso usar o pires para colocar água? Mãe! Precisamos arrumar os coitadinhos, eles estão com frio! Olhe como eles tremem.- Ri das minhas garotinhas, tão felizes com tão pouco.

Estava cansada com as sacolas de compras pesadas, o almoço por fazer e agora pintinhos. Era só o que me faltava! Ainda tentei argumentar que eles não iriam sobreviver longe da mãe, mas o astuto vendedor foi mais rápido e declarou que eram órfãos. Três meninas, uma casa pequena de vila, em um subúrbio quase no fim do mundo. Trabalhando dia e noite na máquina de costura, sem marido para ajudar e contas e contas atrasadas.

A sala transformada em provador para as muitas freguesas apressadas e exigentes. Decidi fazer macarrão, apontei o banheiro e dei as ordens:- Correndo para o banho, vou aprontar nosso almoço e quero todas arrumadas. Larguem estes pintos que depois eu cuido. Andem com isso!- E elas foram correndo, as risadinhas sempre acompanhando como se tudo não passasse de uma grande diversão.

As menores sempre seguiam Alice, com apenas dez anos sempre ajudou a cuidar das irmãs com muita paciência e carinho. Aída nasceu quando Alice tinha três anos e Clara foi a raspa do tacho, caçula que marcou a mudança em minha vida há quase cinco anos. Lindas em seus uniformes, penteadas e cheirando a alfazema elas sentavam-se à mesa e entre risadas e brincadeiras partilhavam as refeições simples. Estavam sempre atentas ao horário para evitar atrasos na escolinha do bairro, eram tão estudiosas e inteligentes!

Quando partiam, o único som em minha casinha era o barulho da máquina de costura que trabalhava sem parar, caseando e fazendo roupas e mais roupas para freguesas ansiosas. Naquele dia procurei a tesoura de ponta e não encontrei, pensei nas garotas e no perigo, pois era uma tesoura bem afiada. Imediatamente parei tudo e comecei a vasculhar a casa inteira. Minha primeira reação foi procurar na caixa de brinquedos, depois nas gavetas, embaixo do beliche e a cesta de roupas sujas. Local improvável, mesmo assim derramei tudo no chão e olhei peça por peça. Nada. Fiquei mais nervosa ainda e continuei buscando.

Finalmente o minúsculo quintal, um quadrado de cimento, com direito ao tanque de roupas, varal e uma área coberta. Ouvi o som dos pintinhos dentro de uma caixa de sapatos, elas haviam feito furinhos e colado adesivos coloridos. A tesoura estava ao lado esquecida, agradeci mentalmente não ter acontecido nada grave e levantei a tampa da caixa para espiar os bichinhos. Sufoquei um grito de horror e senti um enjôo com a comida recém ingerida.

Dois pintos bicavam a cabeça de um terceiro, que também teve os pés decepados. O corpo do pintinho estava aberto e o interior revirado. De imediato tirei os sobreviventes e joguei as sobras no lixo. Com um pano úmido, limpei e ajeitei os demais em outra caixa. Não adiantava fingir, sabia perfeitamente quem havia sido a autora. Só não entendia os motivos, o que fazer e nem onde procurar ajuda. Ela havia parado com estas pequenas maldades, chamo assim porque tenho medo de pronunciar a palavra correta, mas tudo indicava que estava recomeçando.

Enchi uma xícara de café bem forte e adocei lentamente, observando o líquido escuro lembrei da cor dos olhos de Clara, tão pequena e sempre aprontando as piores façanhas. As irmãs reclamavam das bonecas quebradas, dos pertences que sumiam, dos doces amassados e eu sempre dei um jeito de repor e contornar a situação. Desta vez, ela havia ido longe demais, iria falar com ela seriamente. Talvez um castigo severo ajudasse, mas eu não tinha certeza, Clara era imprevisível e muito arisca. E só tinha quatro anos, era praticamente um bebê.

Respirei fundo quando vi a pequena Aída correndo para o quintal, logo ela gritou que havia sumido um dos pintinhos. Pedi às meninas que saíssem um pouco:- Alice, pode ir com Aída para a vila brincar, preciso falar com Clara.- Ela fizeram um sinal afirmativo e correram para trocar de roupas, em segundos estavam na calçada com as outras crianças.
Clara. Bochechas gordinhas e coradas, exibiu o sorriso de anjo que ignorei. Tentei parecer severa:- Clara.Você fez alguma coisa errada? – Ela estava sentada muito séria, na beirada da cama, balança as perninhas e me encarando sem medo:- Nada mamãe. Não fiz nada.

- Clara, ouça a mamãe e diga a verdade. Pegou a tesoura de costura da mamãe?- Não consegui falar sobre os pintos, tinha medo de ouvir a verdade.- A menina não se mexeu, apenas apontou para a bolsinha da escola. Peguei a pastinha e abri, com as mãos trêmulas vi os desenhos dos pintos sem cabeça e de um rabisco forte, um borrão vermelho com bocas e olhos imensos com dentes pontudos. Um monstro comum nas fantasias infantis, tentei mentir para mim mesma:

- O que é isso, minha filha? – Perguntei já antevendo a resposta. Clara vivia desenhando monstros e a professora já havia me chamado para conversar inúmeras vezes.

- Não posso falar. Meu amigo disse que eu podia fazer e eu fiz – Ela arregalou os olhos e eu quase tive pena.

- Quero saber o que tem neste desenho. Porquê estes riscos e dentes?É um bicho-papão?

- Ele vai ficar mau se eu contar. Quero brincar com Aída.- Segurei o rostinho dela entre as mãos, obrigando-a a me encarar. - Você matou o pintinho? Fale a verdade, não vou bater em você só quero que conte a verdade.

Ela não emitiu um som. Gritei que ficaria de castigo uma semana, disse que cortaria a sobremesa e por fim ameacei pegar o chinelo. Nem assim, nada fez com que a menina falasse, senti que ia perder a paciência e saí do quarto. Alice e Aída estavam no corredor ouvindo tudo, eram muito unidas e sempre defendiam a menor:

- Mãe, ela fez sem querer. Clarinha não fez por mal. – As irmãs estavam assustadas e estranhas.

- Vocês estão brincando comigo? O que ela fez é muito sério! Não fiquem acobertando os erros de Clara!- Eu estava realmente nervosa e mal percebi que gritava com as garotas.

- Mãe se ela ficar zangada, será pior e você sabe o que ela fez com os brinquedos da última vez que ficou de castigo. – Minha pequena Aída estava quase chorando.

- Eu disse para vocês ficarem lá fora e esperarem eu chamar. Olhe para ela agora, com todo este apoio ela nunca vai me obedecer.

- Mãe, mãezinha... Clarinha não liga pra nada, ela já está quase dormindo e daqui a pouco vai brincar com o fantasma amigo dela. Não é justo!- Alice me olhou zangada e ao mesmo tempo, eu consegui perceber a doçura da minha mais velha. Não sei porque não fui mais complacente.

- Dei uma ordem e não fui obedecida, agora todas terão o mesmo castigo. Não liguem a TV, não quero brincadeiras, façam o dever de casa e depois venham jantar em silencio. Hoje todo mundo vai dormir cedo. - Eu sabia que as meninas estavam apavoradas por conta dos brinquedos quebrados, os bichinhos de pelúcia com os olhos furados, as bonecas com os cabelos arrancados e tudo que Clara conseguiu destruir usando apenas as mãos.

O gato sumiu nesta época e Clara começou a conversar em voz alta com o amiguinho imaginário. Foi também quando Alice e Aída passaram a dormir comigo e Clarinha não se importou em ter o quarto inteirinho para si. Mas eu estava confusa demais para tomar decisões acertadas e achei correto que todas aprendessem a lição.

Lembro que as panelas ferviam o feijão recém temperado, arroz fresco e carne picada. Com a colher de pau, mexi os legumes e meus pensamentos foram longe. Senti que não podia fazer nada além do que já havia feito e só me restava esperar. Meus pensamentos foram buscar lembranças perdidas no passado, entre goles do café forte que desceu arranhando minha garganta.

Jamais entendi como o pai de Clara havia aparecido em minha vida. Foi em uma noite triste, tinha acabado de apanhar muito do meu marido e saí correndo de casa tentando escapar do que acreditei ser meu fim. Chovia muito e eu fugi, procurei um orelhão funcionando, liguei para minha cunhada e pedi que pegasse as meninas. Ela sempre ajudava, mas não ia contra o irmão, só tinha pena das crianças e me acusava de ser burra e fraca.

Sou quase analfabeta e não consegui emprego que pagasse o suficiente para sustentar minhas duas filhas, então me sujeitava às maldades do meu marido. Alternava surras quase diárias com sexo humilhante e doloroso. A violência e o medo de pegar uma doença venérea me deixavam em pânico contínuo, meu marido vivia no meio de prostitutas e marginais. Era um homem mal humorado e temido na área. Ninguém me defendeu uma única vez, apesar de ser do conhecimento geral pelas marcas que eu carregava.

Minha vida era um horror, um inferno sem fim e eu tinha pena de largar as garotas nas mãos dele caso tomasse veneno e acabasse de vez com meu sofrimento. Nesta época eu só pensava em me matar e levar as crianças comigo, mas minha cunhada tinha razão em dizer que eu era covarde, hoje agradeço a fraqueza. Minha consciência é leve e não tenho remorsos para me corroer.

Lembranças são como névoas, só sei que vaguei sem rumo, disposta a ficar longe de casa até ele se acalmar, não tinha para onde ir e fiquei debaixo de uma marquise no ponto de ônibus horas a fio. A rua estava praticamente deserta, apenas o muro da ferrovia do outro lado da calçada e vez por outra um trem passando ligeiro. O movimento naquele lugar já era ruim, em dia de temporal não se via viva alma e eu comecei a sentir muito frio, as roupas estavam encharcadas e meus sapatos rotos quase se desmanchando.

Foi quando percebi um homem ao meu lado, não vi de onde tinha vindo mas ele tinha boa aparência e parecia tranqüilo. Minha cara inchada e o olho roxo me envergonharam de tal forma, que me encolhi mais ainda no canto. Ele se aproximou e colocou a própria capa de chuva nos meus ombros, ajeitou a gola com cuidado e sorriu. Eu não sei se foi o único gesto bondoso que recebi, depois de anos presa naquela casa casada um bêbado espancador. Só sei que quando ele me estendeu a mão, eu simplesmente segui aquele homem por vielas e ruas, cada vez mais distante da entrada principal da favela.

Chegamos à uma subida, ele me guiou pelos becos e subimos por quase 15 minutos até chegar em um barraco. Ele abriu a porta e eu entrei, mal olhei aquele desconhecido e não me importei quando ele tirou meu vestido e me levou para a cama. Nada dissemos e eu não senti vontade alguma de falar, ele entendeu porque não me fez qualquer pergunta e fiquei grata.

Ele era bem moreno, tinha olhos negros brilhantes, a pele macia ao toque e um cheiro bom de homem que há tempos eu não sentia. Minha mente caiu no vazio quando abri as pernas e deixei que ele me penetrasse, gemi enquanto era completamente preenchida. Foi um sexo mudo e sem preparo, mas senti uma excitação que nunca havia experimentado antes.

Os movimentos dele eram fortes e constantes, ritmados e batiam fundo arrancando gritos que eu havia sufocado, um prazer que eu julgava morto pelas pancadas. Não sei quanto tempo ficamos assim, perdi as contas de quanto gozei e no auge da agonia trancei as pernas no dorso do homem, feito um bicho que impede o macho de sair e largar a fêmea. Eu me sentia tão mulher que desejei que aquele momento fosse eterno, ele compreendeu porque o tempo parou naquela cama alquebrada que rangia a cada investida. O teto de zinco repercutindo o ruído da chuva intensa e abafando meus gemidos altos, eram o som mais que perfeito.

Naquela noite perdi as contas das vezes que ele me procurou, fomos ficando mais íntimos e perdi a vergonha de pedir. Naquela noite fui fêmea pela primeira vez, fiz coisas que nunca havia experimentado e senti que podia morrer de prazer. Finalmente quando o dia já amanhecia, gozamos juntos mais uma vez e ele relaxou. Eu o abracei e não deixei que ele saísse de mim, o peso daquele homem contra o meu corpo transmitia uma sensação estranha de conforto. Meus olhos pesaram e não controlei a exaustão.

Acordei sozinha. Pensei que tudo tinha sido um sonho, mas eu estava deitada na cama e o barraco era o mesmo. Meu corpo dolorido e as pernas meladas, eram a prova que eu tinha estado com um homem na noite anterior, mas ele tinha ido embora e eu precisava voltar para casa. Vesti minha roupa e saí pelas ruas estreitas, era cedo demais e poucos trabalhadores deixavam suas casas.

Andei algum tempo e cheguei a vila onde eu ainda vivo, no portão havia uma ambulância, carro de bombeiros e policia. Senti um arrepio quando vi minha casa com as portas escancaradas e a maca levando o corpo coberto do meu marido. Minha cunhada gritou que eu havia matado seu irmão, mas o bombeiro informou que havia sido um infarto fulminante e o irresponsável ainda tinha posto fogo no sofá, deixando cair o cigarro acesso na hora derradeira.

Lamentei o sofá novinho e arruinado e suspirei aliviada com a viuvez recém adquirida. Isto foi há quatro anos e a gravidez imediata de Clarinha serviu para reaproximar a família do falecido, eles passaram a ajudar com as despesas das meninas e da casa. A paternidade de Clara jamais foi contestada.
Clara nunca foi uma criança igual às irmãs, sempre aconteciam coisas estranhas e ela parecia muito madura para a idade. Algumas vezes me assustava com a forma com que ela me olhava, como se pudesse entender a dor que eu carregava.

No primeiro aniversário a festinha estava pronta, subitamente um temporal desabou castigando o bairro. Ficamos isoladas e sem luz, mesmo assim resolvi cantar parabéns e na hora em que acendi a velinha, na penumbra percebi uma silhueta movendo-se nas sombras. O bebê olhava na direção atirando o corpinho como que pedindo colo e eu estava apavorada. Por sorte a luz retornou e nossa casa encheu com os vizinhos, cantamos novamente com todas as crianças presentes e partimos o bolo. Clara chorou o tempo todo e acabou dormindo no meio da festa. Naquela noite sonhei com o estranho pai de Clara e ele sorria com satisfação.

A menina cresceu e todos os anos, no dia do nascimento da pequenina eu sentia a presença daquele estranho. Podia sentir o cheiro da colônia e meu corpo doía com as lembranças, eu ainda o desejei por anos e sonhava que um dia o encontraria. Durante muito tempo não tive outro homem, era como se eu repelisse os olhares masculinos e fosse completamente ignorada. Isto me entristeceu e terminei me isolando cada vez mais e mais nas costuras. Eu ainda era jovem e sentia muita falta de um companheiro, uma amiga me convenceu a freqüentar um clube de samba próximo à minha casa e eu aceitei. Fomos duas vezes e eu ainda tinha esperanças de achar no meio do salão o homem misterioso.

Foi nesta época que Clara começou a fazer o que chamo pequenas maldades, e por mais que eu procurasse ajuda ninguém me dizia nada consistente. Busquei a resposta na religião e me mandaram procurar um médico, levei ao doutor que atestou que ela era saudável e normal, finalmente fui bater na porta de Dona Cotinha, a vidente onde terminam os casos sem solução.

Cheguei à casa antiga e na salinha já tinham umas quinze mulheres, estranho como só há mulheres nestes lugares esotéricos, acho que os homens não acreditam ou sentem medo de procurar. Peguei uma revista e fingi ler, enquanto ouvia as outras contando mil casos de sucessos alcançados com a médium ou do que esperavam conseguir. Eu fiquei quieta no meu cantinho até ser chamada, o quarto era arejado e arrumado. Apenas um altar com a imagem de Nossa Senhora e algumas velas, na mesa coberta por uma toalha de linho branco, um copo de água e alguns patuás. Ela me olhou com expressão suave e acolhedora, era uma senhorinha bem simpática e eu sorri:- Você dormiu com o mal e agora está com medo do fruto.- A boca da velhinha retorceu em um sorriso feio- Não quero esta coisa me perturbando, pode ir embora da minha casa.- A vidente ajeitou os óculos que marcavam o nariz, tamanho o peso das lentes e deixou tocou um sininho.

Logo apareceu uma mocinha que pelos traços era parente, neta ou bisneta:- Por hoje terminou, ela está cansada e não vai atender mais ninguém.
Nesta hora me ajoelhei e perdi a vergonha, chorei e implorei ajuda por tanto tempo que ela fez um gesto apontando a cadeira:- Não foi porque eu quis, eu não sabia nem sei de nada. Só estou assustada porque minha filhinha é estranha. Ela vê coisas, fala sozinha e assusta as irmãs .

- É tarde demais, a menina não vai ficar muito tempo entre nós, mas enquanto estiver aqui é preciso ter muito cuidado.

- Como assim? Minha filhinha está com os dias contados? Que é isso Dona Cotinha? Ela só tem quatro anos, não é possível o que a senhora está falando é mentira!- A idosa levantou-se e vi que ela devia ter quase oitenta anos. Era quase cega, apoiada na mesa ela me encarava muito séria. Fiquei envergonhada e pedi desculpas:

- A menina não é sua nem de ninguém, ela vai embora com o pai e você não pode impedir. E se tentar, terá um final ruim e arrastará com suas outras filhas para o mesmo buraco. Sinto muito.

- Não é possível salvar minha filha? Não é possível mudar isto tudo? O que eu fiz? Quem é este homem?

- Este homem é um bruxo poderoso, maldoso e que se aproveitou de você para ter um filho. Ele sabe de todos os seus passos, controla sua vida de longe e a menina é tão ruim quanto o pai. Ele vive no nosso mundo mas pode caminhar no mundo das trevas, ele deixa o corpo e vai em espírito. É assim que ele e a filha se encontram desde o nascimento. Não tem jeito, ele pode matar se for preciso, tem dinheiro para calar a boca de muita gente e você vai sumir sem deixar rastro se teimar em não entender. É o destino. Ponto final.

- Quando? Quanto tempo eu tenho contra este homem? Você tem idéia do que está me dizendo?- A velha dobrou o corpo como se houvesse sido golpeada e gemeu de dor, foi escorregando para o chão e arrastando a toalha com ela. A jovem correu para me ajudar a socorrer a idosa, mas ela fez um gesto para que eu me afastasse:- Saia agora. No dia do aniversário da criança ele virá. Não volte nunca mais, é um pedido que faço.

Deixei a casinha de Dona Cotinha em pânico, me sentindo responsável por ter provocado o sofrimento na pobre senhora e ainda por cima não tinha mais que algumas semanas para tentar achar uma solução para o problema de Clara. Clara matou um bichinho, sabia que algumas crianças faziam estas coisas, não porque são ruins mas por falta de maturidade. Mas como explicar o comportamento das irmãs? Foi neste instante que ouvi um grito e saí correndo em direção ao quarto das meninas:- Clara! O que você fez com suas irmãs?- Alice e Aída estavam sentadas no chão, os cabelos reduzidos a pequenos tufos, praticamente carecas enquanto Clara usava a tesoura que eu havia escondido.

- São minhas bonequinhas e eu quis cortar os cabelinhos delas. Mas Aída gritou porque é boba.- A pobre gritou porque Clara havia provocado um talho na orelha da menina e o sangue vertia sem parar. Peguei o primeiro pedaço de pano que achei e enrolei a cabeça de Aída, com minha filha no colo, corri para a vila e pedi ajuda.

Deixei Clara e Alice com uma vizinha indignada e fui para o hospital público. Depois de muita luta para ser atendida, minha menina foi socorrida e levou vários pontos. Os médicos me olhavam como seu eu fosse uma irresponsável imbecil e eu chorei com Aída a cada agulhada. Quando voltamos, peguei as outras meninas e tive que me explicar para toda a vizinhança, claro que ninguém aliviou e foi péssimo.

Clara estava quieta e Alice contou que não lembrava porque haviam concordado com a brincadeira. Coloquei as duas pra dormir comigo e pela primeira vez tive vontade de trancar a porta. Mas não consegui e de madrugada levantei para ver se Clara estava dormindo, ela parecia tão serena em seu sono que parte de mim não queria acreditar naquelas coisas horríveis. Eu estava sentada na beira da caminha, ela abriu os olhos e me olhou de uma forma que não gostei:- O que foi filha? Tudo bem... Amanhã vamos ver sua irmã e você vai pedir desculpas.

- Não vou pedir nada. Eu não gosto dela, não gosto de Alice e não gosto de você- Clara apontou o dedinho para mim.- Eu gosto do meu pai.

- Seu pai foi para o céu, porque não gosta de nós? Somos sua família.

- Não são. Meu pai não foi para o céu, ele está bem aqui e você é uma mentirosa!- A menina continuou apontando em minha direção e fui obrigada a olhar para trás. Neste momento senti como seu houvesse levado um soco no estômago e instintivamente me encolhi. A sombra passou ao meu lado e aproximou-se de Clarinha, tentei levantar para pegar a menina e não consegui.

- Clara! Não é seu pai, venha pra cá com a mamãe. Venha filha.- Não consegui falar mais nada e a menina me ignorou enquanto olhava a sombra e sorria. Aos poucos meus olhos foram se acostumando com a escuridão e distingui os traços daquele maldito estranho.

Era ele com toda certeza, não um fantasma ou coisa parecida, era o espectro que me incomodava e eu precisava impedi-lo de roubar minha filha:- Você é um monstro! Monstro! Eu consigo te enxergar e é um covarde também, que usa uma menininha inocente e nem ao menos tem peito para assumir o que diz ser seu. É minha filha e você não vai fazer nada contra ela, quem é você? Uma sombra? Uma coisa ruim que se aproveita de uma criança como se aproveitou de mim? É isso. Eu não tenho medo de você. Pare de atormentar minha família.

Nunca soube se tinha enlouquecido ou era somente cansaço e desespero, mas deu certo e aquela coisa foi ficando cada vez menor. Quando ele sumiu por completo, peguei Clara e a levei para o meu quarto, passei a madrugada inteira velando o sono das minhas filhas.
No dia seguinte recebi a visita de um advogado, vinha por parte de um completo desconhecido que alegava ser pai da minha filha Clara. Então tive a prova que ele havia escutado minhas ofensas, que ele era um homem e não um espírito ruim. Ele usava algum truque que eu não conhecia, depois de tantos anos de espera, tudo que senti foi um ódio crescente por tantos anos desperdiçados.

Apresentei a certidão de nascimento da menina com o nome do meu falecido marido, disse que chamaria a policia se fosse incomodada. Sabia que o risco que corria era grande mas não aceitei nada do louco, psicopata ou o quer que fosse. Lamentei porque se tivesse algum dinheiro guardado, poderia fugir com as meninas para algum lugar bem longe...Mas o pouco que ganhava mal cobria os gastos. E dona Cotinha havia dito que não adiantava fugir. Eu estava muito nervosa e mal podia raciocinar com tantos problemas, mas naquela hora só conseguia lembrar as palavras da vidente e tremer de medo.

Dias depois Clara era outra criança e não falava com amiguinhos imaginários ou fazia nada fora do normal. As outras meninas estavam lindas com o cabelinho bem curtinho e não falamos mais sobre o incidente. Faltavam poucos dias para o quinto aniversario de Clara e eu comecei a organizar tudo com simplicidade, comprei bolas e fiz enfeites, planejei um bolo com o tema das princesas e estava com as mãos doendo de tanto enrolar docinhos. Finalmente chegou o dia da festinha e todas elas estavam com roupinhas de princesas, fiz tudo com muito carinho e Clara corria pela casa balançando a saia comprida e rodopiando. Ela havia escolhido ser Branca de Neve e estava uma graça com a fantasia. Enfeitei a mesa com maças do amor e algumas crianças estavam tão ansiosas para provar o doce que liberei tudo, antes mesmo de cantar o parabéns e partir o bolo, elas se lambuzavam com o caramelo vermelho e se deliciavam com brigadeiros e cajuzinhos.

Esqueci todos os problemas e estava feliz, vendo todas aquelas crianças ao redor de Clara fazendo a maior algazarra, pensei faziam alguma brincadeira. Foi quando vislumbrei Clara parada no centro da roda, ela apertava a mão contra a garganta, abrindo e fechando a boquinha tentando respirar, por isso estavam ao redor da menina e gritavam sem parar.

Chamei pelos adultos pedindo socorro e todos correram para ajudar minha menina, havia uma enfermeira que conhecia um procedimento correto e nem assim conseguiu que ela cuspisse o pedaço de maçã. Quando a ambulância chegou, Clara era um corpo sem vida em meus braços e eu não queria deixar que a levassem. Horas mais tarde algumas crianças começaram a vomitar e evacuar sangue, Aída e Alice estavam entre elas e eu perdi completamente a razão.

Descontrolada com a dor que sentia, fui medicada e perdi os momentos finais das minhas outras filhas. Tudo que eu consegui entender é que uma bactéria havia causado as mortes dos pequenos, uma maldita bactéria comum em embutidos de má qualidade ou com o prazo vencido. Uma vizinha foi verificar a lixeira da minha cozinha e achou uma embalagem de salsichas que eu nunca usei na vida com a data de validade de um ano atrás. Imediatamente fui acusada de homicídio culposo e outras coisas, como maus tratos e até mesmo insanidade.

De uma hora para outra, havia me tornado a bruxa malvada capaz de servir na festa de aniversario da própria filha, a morte em forma de guloseimas comuns. Minha intenção? Maldade! Bruxaria, Satanismo e outras coisas ligadas. Foi o que ouvi o povo gritando sob a janela do quarto onde estou algemada à cama, aguardando a remoção para uma prisão de segurança máxima até ser julgada. Toda a cidade me odeia e qualquer presa quer o privilégio da minha cabeça. Um policial disse que talvez eu termine os dias em um hospital psiquiátrico, mas eu não importo mais com nada... Acabei de ver minhas filhas e elas parecem bem, estão vestindo seus uniformes e o pai de Clara as trata com carinho.

Não sinto mais raiva dele, porque sei que ele é o homem da minha vida e nada fez de mal, ele apenas sabia que eu não estava pronta para cuidar de meninas tão especiais. Ele me disse isto e me pediu desculpas, minhas filhas também confirmaram que são mais felizes longe daquelas pessoas horríveis e do lugar onde vivíamos. Eu apenas espero uma chance de me juntar à eles,vamos ser uma família de verdade, por isso preciso fingir que estou bem calma e compreendo tudo que dizem. As janelas do quarto não tem grades, quando ele me mostrou, fiquei imensamente feliz e meu coração se encheu de esperança.



Tablóides sensacionalistas. Notícias sobre crimes e afins.




Os jornais noticiaram o pior crime jamais visto na cidade de Passalina, uma bucólica cidade do interior onde o grau de criminalidade é quase zero. Apesar de boa parte da população... ...Renda média, há existência de favelas e grande número de desempregados... A manchete principal percorreu todo o país e deixou chocada a população: Psicopata mata trinta pessoas em festa infantil, três vítimas eram filhas da própria assassina. O crime aconteceu quando comemoravam o aniversario de cinco anos ... Ela misturou veneno à comida servida e não socorreu às vitimas agonizantes... Não houve sobreviventes... A assassina já tinha sido internada quando adolescente e tido alta apesar de um dos psiquiatras ter diagnosticado esquizofrenia... Divergências no diagnóstico foi a causa!... Segundo junta médica... Antigo médico diz que paciente jamais poderia ter saído da Instituição...Laudos confirmam... Suicídio em hospital comprova ineficiência da segurança... Parentes vão processar o sistema de saúde e exigir... IndenizAÇÃO... indeniza AÇÃO... AÇÃO.

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