venerdì 24 settembre 2010

Carências e uma taça de vinho tinto - Giselle Sato


Por que não?

Fomos amantes
O que partilhamos
Ficou no silencio
Perguntas sem respostas
Beijos deslizando além alma.

Doce delírio dos esquecidos
Mãos que não se tocarão
Palavras não ditas e perdidas
Chuva fria, batendo na vidraça

Lá fora vejo silhuetas em um abraço
Tão apertado e apaixonado.
Não somos nós. Não hoje nem neste instante.
Ficamos no passado, envolto em brumas de
Lembranças

Esperança
Risadas de crianças
Balões coloridos, algodão doce, caramelos
Chocolates, chicletes nos cabelos, flores
Sabores
Cinema aos domingos, praia nos sábados mornos

E de tudo um pouco, a dor de jamais voltarmos a ser... um par

Mulher procura homem, mais de 40 anos... sincero e carinhoso





Uma mulher madura, bonita e bem cuidada, inteligente e culta. Alta, corpo no peso certo, roupas simples e elegantes compondo um estilo sóbrio e refinado. Silvia escolheu uma das fotos que a filha da melhor amiga retocou no photoshop e sorriu satisfeita. Comparadas com as de dez anos atrás, pelo menos estas tinham data e o pretendente saberia que eram recentes ainda que levemente alteradas.

Leu e releu a parte em que deveria descrever seus atributos físicos e marcou a opção adequada. Empacou no pequeno texto sobre si, digitou mulher alegre, de bem com a vida, estabilizada e independente quer achar companheiro ideal. Achou muito apelativo e trocou por decidida a encontrar um parceiro compatível com seu espírito alto astral. Não gostou do conjunto e apagou tudo, decidiu não fazer nada até esfriar a cabeça e encontrar as palavras certas. Alto astral era tudo que ela não tinha naquele momento, estava chateada até o último fio de cabelo e nada parecia bom.

Quando o espelho ao lado da mesinha do computador refletiu seu rosto contrariado, imediatamente achou que ele não estava sendo nada condescendente, notou as olheiras e o cansaço das noites mal dormidas. Mexeu no penteado, pensou em um novo corte e fez uma careta engraçada, suspirou fundo e trocou o espelho de lugar. Pendurou o mais distante possível, definitivamente aquele estava sendo um final de noite bem difícil, enquanto bebericava o café recém coado sentiu o vazio que sempre antecedia suas crises.

Fora Orkut e MSN este seria o sétimo ou nono site de relacionamento em que entraria. No início os convites insistentes das amigas foram uma boa desculpa, enchiam sua caixa de email com pedidos de adesão e ela não queria bancar a enjoada. Depois a coisa ficou mais séria e ela passou a deixar o PC ligado vinte e quatro horas, tudo aberto esperando mensagens que não paravam de chegar. Lia tudo na maior alegria. Após um dia de trabalho exaustivo, no silencio da casa confortável porém vazia, aqueles flertes eram puro deleite.

Tinha interessados, compatíveis, possíveis paqueras, pretendentes, torpedos de homens de todo o Brasil e até do exterior. Gostava de ver as fotos dos perfis, lia os comentários das supostas rivais e sentia até ciúmes de algumas mais afoitas. Sílvia apesar de querer acreditar em suas fantasias, tinha um pé na realidade que refreava seus impulsos loucos de pegar um avião e ir atrás do primeiro moreno no nordeste. Ela percebia quando os homens usavam fotos onde alguma mulher havia sido cortada, enxergava a aliança nos mais desatentos e se o interessado só usava o site durante o dia perguntava que alguma coisa o impedia de conversarem à noite. Estes sumiam com desculpas esfarrapadas, mas Silvia adorava desmascarar os mentirosos e considerava-se muito esperta.

Com o tempo aprendeu a identificar se valeria ou não a pena aceitar o pedido inicial de amizade. Isto quando percebeu que tinha centenas de ‘’amigos’’, a maioria nunca havia trocado um único cumprimento e só faziam número. Resolveu criar uma espécie de triagem e isto era outra diversão. Varias vezes tentou parar com o hábito, mas já fazia parte de sua rotina fuxicar os sites, ver fotos de estranhos, vasculhar as trocas de mensagens e acompanhar alguns casos de conhecidos.

Silvia adorava avaliar os perfis, começava verificando a quantidade de amigas que homem exibia, se ultrapasse os três dígitos, excluía porque na sua opinião seria mais uma na coleção. Depois lia as respostas sobre posição social, cultural e principalmente econômica. Se haviam um monte de atributos, fluência em cinco idiomas, cargo altíssimo e outras vantagens, ela simplesmente não entendia o que um homem com tantas qualificações fazia em um site à procura de encontros sérios. Pelo menos para ela e a grande maioria, este ser perfeito estava além das possibilidades.
Silvia neste ponto ficava confusa com suas próprias concepções: se um homem dizia que estava procurando uma parceira para se relacionar, porque expunha tanto poder econômico se exibindo em carros importados, cenários de capa de revista... Pelos elogios que beiravam o patético, ele só atraía desesperadas em nada compatíveis. Um monte de mulheres competindo por atenção, era uma massagem grátis no ego de qualquer frustrado ou falso empresário.

Isto sem falar na vez em que começou uma amizade com um garoto de programa. Claro que ele não disse nada no início e Silvia naquela época ainda acreditava em príncipes sarados, bronzeados e com abdome de tanquinho procurando namoradas. Neste ponto ela sentia-se envergonhada, afinal com toda experiência havia sido vítima de um destes moços. A brincadeira custou o pagamento da conta atrasada de telefone do amado, alguns depósitos para ajudar no provedor da internet e finalmente um notebook como presente de aniversario. Isto sem nunca terem tido nada além de longos papos varando as madrugadas solitárias, conversas cheias de palavras doces que a deixaram encantada como uma adolescente crédula e apaixonada.

Silvia sabia que não passavam de mentiras bem contadas, elogios falsos e promessas bobas. Ainda assim o apego falava mais alto e ela sofreu para cortar esta relação. O rapaz a esta altura já tinha o número de seu celular e enchia a caixa de mensagens pedindo para reatarem, como se estivessem de fato tendo um romance. As ligações a cobrar foram tantas que Silvia trocou de operadora e bloqueou todos os acessos possíveis até a dor passar. Mesmo lesada, ela nutria um sentimento doentio pelo golpista e tinha recaídas constantes. Nas noites solitárias, um diabinho soprava em seu ouvido que o custo benefício valeria a pena e ela entrava escondida nas salas dos sites e ele sempre estava online, chegava a chorar pensando com quem ele poderia estar falando.

Então Silvia simplificou da seguinte maneira: senhores casados, comprometidos ou solteirões felizes passando o tempo. Garotões tentando a sorte com mulheres com dinheiro e carentes. Os exibicionistas, narcisistas ou similares, apenas insuflando o ego e só isto mesmo! E finalmente os raríssimos querendo encontrar companhia de verdade, tão raros que ela jamais os achou. Enquanto aguardava o grande encontro com seu parceiro perfeito, acumulava horas ociosas trocando meia verdades com desconhecidos. Homens que deixava entrar em sua vida, de braços abertos, mas que nunca acrescentaram nada e ainda a deixavam cada vez mais frustrada e ansiosa. Ligou para a melhor amiga, companheira de buscas e grande viciada em internet:

-Marcinha? Está ocupada? – Pelo barulho das teclas, soube imediatamente a resposta.

- Pode falar. – Marcinha mastigava, digitava e ainda conseguia murmurar alguma coisa.

- É o seguinte, estou com uma daquelas crises de consciência pesada. Com vontade de apagar tudo e mandar a real. Eu sou fake, tudo é mentira nos meus perfis, não vou achar nada começando deste jeito.

- Pode parar, bebe uma cervejinha e vai dormir que é stress. Mulher! Depois vai se arrepender, maior trabalho jogado fora por conta de uma besteira.

- Que besteira?

- Teu garotão não está respondendo seus emails, você cismou que ele te deletou de tudo e agora está chateada. Tem um monte dando mole, escolhe outro...

- Primeiro não sei se ele me excluiu, só não o vejo online há duas semanas. Mas de qualquer forma meus lances nunca saem do virtual e você sabe disso. É que eu vivo a fantasia e fico mal quando acaba.

- Silvinha, tem muito cara legal acima dos cinqüenta. Podia tentar europeu, sabe que eles não dão tanta importância para idade.

- Eu não dou sorte, ainda não achei nenhum destes que você tecla. Além do mais, sua carinha de menina ajuda muito. Vou ter que assumir tudo e to com medo de não achar nenhum interessado. Já pensou no vexame? Zero interessados? Nenhuma visita no perfil?

- Mas eu paguei por este rostinho, o cirurgião cobrou uma fortuna ou esqueceu? E eu sempre digo que tenho quarenta e cinco anos. Algumas vezes confesso que diminuí um pouquinho, depois que já está rolando um interesse porque a maioria coloca que está procurando mulheres até quarenta e cinco. Mercado tá restrito amiga.

- Não importa, nem coragem para dar um upgrade eu tenho. Vou acabar sozinha, já estou assim há quase dois anos.

- E virtual não conta? Sei que andou dando uns pegas online. – Marcinha gostava de provocar.

- Esquece. Vou fazer algo útil e me livrar deste vício. Onde já se viu beijar monitor? Abraçar web cam, sair de mãos dadas com mouse... Só na sua cabeça.

- Nossa! Está ficando uma neurótica mesmo! Não vem estragar minha noite.

- Podíamos sair pra tomar uma cerveja, tem um barzinho novo que acabou de inaugurar aqui pertinho.

- Ah! Não vou não, estou tão bem falando com meus paqueras... no maior conforto. Preciso desligar Silvinha, meu skype está chamando. Menina, é aquele italiano lindo. Tchau querida, fica tranqüila que isso vai passar. Beijinhos.


Duas semanas mais tarde Silvia embarcou em um cruzeiro de vinte dias. Usou o dinheiro das férias e as economias para a troca do carro e foi arejar a cabeça. Embora quisesse se convencer que não havia viajado com intenção de procurar por companhia, Silvia tinha esperança de unir o útil ao agradável.

Foi observando pessoas sozinhas brincando e rindo normalmente, que ela enxergou que os momentos felizes não dependem de ninguém além de si. Entregar a um parceiro idealizado a enorme responsabilidade de tornar sua existência um mar de rosas era utopia. Olhando o oceano imenso, o céu engolindo o mar no horizonte enquanto o sol morria lento, Silvia ficou feliz por estar ali naquele instante mágico. Foi como se estivesse ouvindo o mundo e seu coração pulsando juntos. Uma sensação de paz renovou de vez o peso do seu coração, e ela olhou ao redor sem pressa.

Eram tantas pessoas diferentes: casais carrancudos, em lua de mel, famílias inteiras brigonas e outras unidas e brincalhonas. Crianças tristes e outras desprendidas e engraçadas, idosos aproveitando o máximo possível e alguns apenas descansando. Silvia podia passar o dia lendo à beira da piscina ou juntar-se a um grupo para uma aula de hidroginástica. No navio mundinho, ela aceitou que a vida fora dali não era nada diferente. Naquela noite vestiu-se bem, fez uma maquiagem leve e foi aproveitar o baile exibindo seu bronzeado recém adquirido.

Voltou para casa feliz e com a alma leve. Retornou ao trabalho muito mais alegre e simpática, tanto os colegas quanto os alunos retribuíram. Passou a sorrir com muito mais facilidade. Não agüentou e voltou aos sites de encontro com fotos e idade verdadeiras. Ela tem certeza que em breve vai encontrar alguém legal, seja no dia a dia ou online, programou outra viagem para o final do ano e pretende convidar as amigas. Afinal, existem tantas histórias com finais felizes... Porque seria diferente com alguém tão alto astral?

venerdì 17 settembre 2010

NA PONTA DA FACA - Giselle Sato



Laura sabia, com absoluta certeza, que só os apaixonados possuem, que aquele era homem da sua vida. E desta forma, passou a respirar Antonio, deixando de lado qualquer outra coisa que atrapalhasse sua concentração. Claro que no início foram flores e encontros no meio da tarde, mensagens no celular a todo minuto, ligações sem motivo apenas para ouvir o som da voz um do outro. Depois ela recuou, fazendo que ele a procurasse, Laura era mestra no jogo do gato e rato, fazia dos meandros da sedução atos irresistíveis. Finalmente Antonio estava em suas mãos, feito um ratinho dócil, alimentado com bocadinhos de queijo Brie, não por acaso seu favorito.
Sexo foi o encontro dos mesmos gostos: a fome intensa, o completo despertar da gula para depois, saciar parcialmente a luxúria. E completando o ciclo de pecados, cada vez mais fortes e exigentes, exibia o ciúme como fraqueza, aparentemente a única no meio de tantas qualidades:

- Antonio, nunca senti isso por homem algum.Desculpe, mas tudo com você é diferente.- O namorado ainda tinha nas mãos o celular, com toda a agente feminina deletada.

- Você sabe que o que sentimos é forte demais, não dá pra controlar mas eu sei que estou errada.- E chorava copiosamente. Balbuciando desculpas entre soluços cada vez mais fortes, como sempre esperava o namorado com um roupão leve, banho recém tomado e nada além da pele cheirando a hidratante.

- Amor! Não estou zangado, só que todas estas mulheres são clientes importantes. Tudo bem, esqueça tudo. - Ele ligou o laptop e digitou a senha pessoal de acesso.

- Viu? Fico imaginando o que há nestes arquivos, emails, pra você não deixar aberto e bloquear meu acesso. Eu nunca senti isso antes, eu te amo tanto! - Já não chorava quando começou a reclamar sobre senhas e segredos, o pano acetinado da roupa deslizou deixando um ombro à mostra.

- Laura, tudo aqui está relacionado ao meu trabalho, não há nada com que se preocupar, nenhuma ameaça ao nosso relacionamento. – Antonio era extremamente calmo, a fala mansa e tranqüila.

- Não penso assim, meu laptop não tem senha. Se quiser pode olhar a vontade, não tenho nada que você não conheça! - Abriu o computador e praticamente jogou na mesinha ao lado do namorado.

Dois meses morando juntos e ela praticamente não desgrudava de Antonio quando ele colocava os pés em casa. Toda a noite eram ceninhas e ele parecia deliciado em ser o centro das atenções. Laura percebeu e passou a caprichar nas implicâncias.

- Eu jamais faria isso, respeito sua privacidade e não há razões. - Antônio passou os braços sobre os ombros da moça e a envolveu em um abraço forte. Depois foi até a sacada do apartamento e acendeu um cigarro.

- Droga! Você é tão perfeito e eu só faço besteiras. Desculpe amor, juro que não vou mexer nas suas coisas. Prometo. – Laura caminhou até Antônio, ele ainda olhava as luzes da cidade quando ela começou a se esfregar. A sensação de estarem na sacada, praticamente à vista do vizinho, caso este fosse tomar um ar, mexia com o imaginário da moça. Perigo, libido e a sensação de estar sendo observada. Laura estava muito excitada e gemia baixinho... o roupão caiu no piso frio e ela riu baixinho.

- Laura, está louca? Ah! Você não tem jeito, vamos entrar amor. – Ela deu uma risada divertida e lambeu a nuca do namorado, as mãos movendo-se por todo corpo de Antônio, em segundos estavam na cama fazendo as pazes.

No mês seguinte, ela já tinha sua própria gaveta na cômoda da casa do namorado, chinelo e escova de dente. As frutas e geléia preferidas na geladeira. Uma opinião ali, um quadro de presente, o edredom com pouco uso que ficou perfeito com a cor do quarto de Antonio, que um dia se pegou tomando banho e usando o xampu de Laura com naturalidade. Ela era tão sutil, pensou Antonio, em tão pouco tempo já não reconhecia a própria a casa. Na sala todos os porta retratos exibiam fotos de Laura,haviam vasinhos de violetas espalhados pela varanda, e almofadas bordadas no sofá de couro preto.

Percebeu a presença de Laura no banheiro, enquanto a água quente escorria entre os amantes ele pensou que há muito não ficava sozinho. Naquela semana, ela se mudou de vez e Antonio dividiu o closet com um mundo de sapatos, bolsas e roupas que caberiam em um magazine. Mesmo assim, apenas separou as camisas amassadas pelos vestidos de Laura e mandou passar tudo novamente. Decidiram que seria melhor que ela ficasse em casa, até que alguma boa oportunidade de emprego surgisse. Assim, não iria mais às entrevistas em agencias nem passaria o dia perambulando de escritório em escritório:

- Afinal só servem como desculpas para as mesmas cantadas.- Laura instigava o ciúme do homem.- Sou obrigada a me livrar de todas as formas de assédio, pura perda de tempo, não agüento mais passar por tantos transtornos. Fui uma modelo famosa, agora com a idade...

- Querida, você só tem vinte e seis anos e ainda pode estudar e fazer um concurso público. Até lá o que ganho nos sustentará sem problemas, fique tranqüila e aproveite o tempo para cuidar do nosso amor.- Laura exultou, detestava trabalhar e mais ainda estudar, tudo que desejava era casar rapidamente e garantir o futuro. Antônio era rico, diariamente saía bem cedo para o escritório de advocacia e só retornava à noitinha. Tempo suficiente para que ela vasculhasse gavetas e pastas procurando segredos sobre o passado de Antonio.

Definitivamente eles formariam uma família imponente, Laura olhou a foto dos pais de Antonio com atenção, o casal transpirava poder e dinheiro . Imaginou seu próprio álbum de retratos e sentiu ciúmes por ainda não fazer parte daquela estrutura. Sabia que os futuros sogros viviam praticamente isolados em uma fazenda no interior, tinham por hobby o cultivo da lavoura orgânica para consumo próprio e nunca vinham à capital. Antonio os visitava quinzenalmente, desde o início da relação Laura desconfiava quando ele passava o final de semana fora de sua vigilância. Antonio explicou que eles eram um pouco arredios, não recebiam visitas, mas que no futuro os apresentaria. Laura decidiu que iriam assim mesmo, recusas não faziam parte da sua vida, ela iria inverter a situação ao seu favor. Decidiu tomar um longo banho e vestir a melhor lingerie para esperar Antonio:

- Amor! Sei que estou pedindo muito, mesmo assim quero conhecer a fazenda e ser apresentada aos seus pais. Minha família toda já te conhece, sei que eles vão gostar de mim, todo mundo me adora!- Laura aproveitou a pausa após o sexo gostoso.

Comendo sorvete direto do pote, fazendo pose, exibindo do corpo bem feito, era a imagem da sedução. Recostada nos travesseiros altos, olhou o amado no lado oposto, brincando com seus pés, o esmalte vermelho era o fetiche que mais o agradava. Laura gostava muito de receber e mais ainda, dar prazer, o que para muitos era complemento, para ela era o ponto mais forte da relação.

Laura perdeu as contas de quantos homens havia literalmente deixado de quatro, prontos a obedecer, ceder, e fazer qualquer coisa por ela. Foram viagens, carro do ano, jóias, desde os tempos da faculdade, onde teve um caso com o diretor e formou-se, sem jamais ter lido qualquer livro. Com o tempo, eles perdiam o interesse ou ela enjoava da cara do amante. Nem precisava se esforçar, os homens sempre apareciam em sua vida. Companhia nunca havia sido problema, amigas nem tanto, não tinha nem queria competição e inveja. Engatava um caso em outro, alternando empresários, negociantes, atores, todos com dinheiro suficiente ou poder. Bandido ou mocinho, Laura queria ser bajulada, passear e se divertir sem preocupações. Algumas vezes metia-se em apuros. Uma ou duas vezes as coisas ficaram feias e ela conseguiu contornar e sair ilesa, para isto contava com a ajuda do pai.

De qualquer forma, sentia orgulho de ter tanto, em tão pouco tempo e com tanta facilidade. Melhor ainda, todos descartados sem esforço. E tudo que precisou fazer foram alguns telefonemas bem interpretados, pequenas mentiras e uma ou outra visita de agradecimento. Após a solução do problema, porque Laura sabia cobrar como ninguém e não tinha falsos pudores.
Com o namorado atual, não foi diferente, fácil demais, muito fácil mesmo! Ele havia acabado de mudar para o mesmo flat, eram vizinhos de porta e freqüentavam a academia no mesmo horário, viviam se esbarrando no elevador e trocando olhares. Laura trocava de endereço constantemente, não ficava mais de um ano em qualquer lugar, evitava fazer amizades com vizinhos e mal cumprimentava os porteiros. Quando conheceu Antônio sentiu uma atração imediata e inexplicável. Acompanhou os horários do homem e planejou os encontros casuais para puxar assunto sobre qualquer coisa, neste meio-tempo detalhes como os ternos perfeitos, o relógio caríssimo e o poder que o homem exalava, deixavam-no ainda mais atraente.

Ele tinha um quê de intimidade que ela não conseguia entender, sentia-se completa quando conversavam sobre coisas triviais, sempre assuntos que ela adorava tagarelar horas a fio e ninguém tinha muita paciência para escutar. Ele parecia adivinhar seus desejos, o chocolate preferido, a cor das rosas e a generosidade nos pequenos presentes caríssimos. Durante um mês apenas conversaram e Antônio conquistou de vez o coração de Laura. O início do namoro aconteceu após uma sessão de cinema, neste dia Laura entrou pela primeira vez no apartamento de Antônio e sentiu que não queria mais sair daquele lugar. Era bem decorado e feito sob medida para seu gosto, na cama ele também não deixou nada a desejar.

Além do mais parecia rico o suficiente, bonito o bastante, amante regular e completamente mão aberta. Laura deixou o trabalho na segunda semana de namoro, alegou que o pai mandava uma mesada e preferia esperar uma boa oportunidade. Mentiras e mais mentiras. A família falida vivia do que Laura depositava na conta da mãe, pois o pai era viciado em jogo, sempre viveu com os sogros, e nunca foi nada além de um golpista.

Laura aprendeu muito com o pai, secretamente seu maior incentivador e único amigo. Ele que tinha a mesma frase na ponta da língua, havia ensinado:

- Sempre há um otário e um vigarista, o mundo é dos espertos.- Ela concordava e deixava que ele a abrasasse um pouco mais forte, dando-lhe a impressão de ser a melhor coisa que havia em sua vida. O bem mais precioso. De alguma forma, não era mentira, e na ultima visita aos pais anunciou o casamento derradeiro:

- Encontrei a pessoa certa, vocês irão conhecer em breve o homem da minha vida. Rico o bastante e completamente apaixonado por mim. Obedece todas minhas vontades e compra tudo que quero.- Ela rodopiou, exibindo o vestido de uma griffe caríssima e mostrou as mãos cobertas de anéis.

Mas desta vez algo estava acontecendo, apesar de ter vasculhado a vida do namorado, ninguém era intimo o suficiente, ele era um homem sem passado, em uma cidade imensa e apressada. Nem na empresa onde gerenciava um posto alto, Antonio tinha amigos íntimos ou participava de clubes fechado, rodas de empresários ou festas. Laura não havia descoberto absolutamente nada. E isto fazia Laura delirar de curiosidade. Sentia orgulho em ter sido escolhida entre tantas, para Laura fazer parte da vida de Antonio significava o quanto era especial. Praticamente uma mulher perfeita para um homem maravilhoso.

Antonio tocou o tornozelo e subiu até as coxas da mulher, a pele suave e macia sob suas mãos tremeram. Laura soltou um gemido fraco e num impulso, derramou um pouco do doce entre os seios, o sorvete de chocolate escorreu para a barriga e ela com um dedo traçou um desenho até o umbigo e sorriu.
Ao final da tarde, estavam fazendo as malas e pegando a estrada, quase oito horas de viagem até a fazenda, mas Laura estava muito feliz:

- Amor, eles sabem que eu estou indo? Ficaram contentes em me conhecer?- Ela apoiou uma das mãos na perna de Antônio e com a outra, mexia no som, trocando as estações sem gostar de nada.

Antonio dirigia concentrado na estrada movimentada, Laura continuou os carinhos, tentando abrir o zíper do jeans com as pontas dos dedos:

- Por favor, não quero provocar um acidente, pode ficar quieta um pouquinho?- Imediatamente ela se empertigou e fechou a cara, respirando pesadamente.

Duas horas depois, a música suave tocava em silencio absoluto e Laura avaliava se estaria valendo a pena agüentar o mau humor de Antonio. Pela primeira vez as feições duras, as linhas sulcadas no rosto expressivo e forte, deixaram-na entrever um homem que nada tinha de maleável e submisso. Um jogador reconhece o perigo e ela começou a se preocupar:

- Amor, porque não paramos na próxima cidade e procuramos um hotelzinho romântico? Vamos deixar para conhecer seus pais para outro dia? – A voz saiu trêmula, ela tentou fazer o beicinho que antes ele adorava.- Antônio demorou tempo demais para responder, com uma simples negativa movimentou a cabeça e fez um muxoxo.

- Antonio, desculpa mas vou descer no próximo posto ou me deixe aqui mesmo na estrada. Você está me assustando, nunca me tratou assim e eu não quero mais viajar com você. Era para ser um passeio romântico e virou um pesadelo.

- Cale a boca! – Ele falou baixinho.

- O que? Está louco? O que está acontecendo? Vou sair desta merda agora, não tenho nada a ver com sua doideira, aqui não fico!- Laura tateou a maçaneta do carro ignorando a velocidade que trafegavam, estava realmente preparando-se para pular sem medir as conseqüências.

O carro foi jogado no acostamento e Laura não teve tempo para reagir ao soco no rosto, a última coisa que viu foram os olhos injetados de uma fúria até então, desconhecida. Desmontou como uma boneca de pano, Antonio abriu o porta luvas e pegou uma corda fina bem resistente, principalmente depois dos nós apertados que imobilizaram as mãos da mulher. Mais para revidar as ofensas do que propriamente garantir que Laura escapasse, deu alguns tapas fortes no rosto bonito e sorriu. Notou as manchas roxas que já começavam a surgir na pele claríssima, e sorriu novamente. Da boca machucada de Laura, um filete vermelho confundia-se com o batom borrado.
Tornou a rir mais alto e quase aliviado. Reclinou o banco e apertou o cinto de segurança, ajeitou a cabeça de forma que ela parecesse estar dormindo. Mentalmente refez as contas e calculou que em mais duas horas estariam na fazenda.
A noite estava bonita e a lua iluminava a estrada deserta, enquanto dirigia pensava no quanto gostava daquela calmaria, do silencio da madrugada e do cheiro do campo. Aumentou o som e cantarolou uma de suas canções preferidas.

Castigo

Laura sentiu dor nos pontos inchados onde havia sido socada, depois ódio de si e do homem que a enganou. Em seguida olhou ao redor, procurando alguma coisa além da cadeira onde estava amarrada, a sala grande e bem iluminada exibia as paredes nuas e o chão de cimento queimado. Não havia janelas, apenas uma porta de ferro e o sistema de refrigeração ligado no mínimo, renovando o ar sem qualquer ruído.

A moça fechou os olhos, estava com medo e não podia perder a razão. Lembrou que já havia sido presa com um namorado traficante, ele negociou a liberdade de Laura às custas de muitas humilhações e sexo com vários homens ao mesmo tempo. Foi ali que ela decidiu agir de forma inteligente, largou as drogas e passou algum tempo afastada de tudo e todos. Completamente refeita, um ano após o incidente mudou-se para um bairro bom e começou vida nova, tudo parte de um plano para conhecer algum tolo com dinheiro.

Ela escolheu Antonio como aposentadoria, fim de carreira em que ele seria seu golpe derradeiro, tinha sido fácil demais e ele nunca negava nada, parecia um joguete em suas mãos. Com raiva, admitiu que não seguiu seus instintos quando quis aquele homem, agora ela estava a mercê de um completo estranho em que ela apostou tudo em menos de três meses de convívio. Recordou outros dissabores e reuniu forças para enfrentar o que estava chegando, ouviu os passos nos degraus e finalmente a chave girou na fechadura.

Antonio e um casal entraram em silencio e durante algum tempo a observaram, finalmente Laura sussurrou:

- por favor, eu não sei o que está acontecendo com Antonio, ele perdeu o juízo e vocês precisam me ajudar.- Reconheceu a senhora da foto vista no apartamento, só que ele parecia muito mais velha, percebeu que o homem era mais idoso ainda, ambos mantinham a expressão fechada e austera.

-Cale a boca!- gritou o homem com a voz rouca e cortante. -A boca retraída e ligeiramente torta, sinal claro da seqüela de um derrame. As mãos agitaram-se nervosas e ele começou a chorar copiosamente. Imediatamente foi amparado por Antonio e retirado da sala, antes de sair a mulher olhou Laura com firmeza:

- Você vai pagar tudo que fez com minha família, gostaria de assistir cada minuto da sua agonia mas meu marido precisa de mim. Esperamos muito por este dia.

- Mas porque tanta raiva? Eu não os conheço, nunca os vi antes e há muito pouco estou com seu filho. Não me deixe aqui assim, a senhora não tem piedade?- Laura chorava. A senhora aproximou-se e ambas respiravam profundamente:

- E você teve piedade de Julio? Você não se lembra, estava mais preocupada com os fotógrafos. Durante o velório do meu filho, vi sua frieza, ouvi seus comentários com as amiguinhas que te acompanhavam. Eu estava lá, mas não fiz parte daquele circo de maldades. Meu filho suicidou-se com um tiro na cabeça em um cortiço imundo, um jovem cheio de vida e com um futuro inteiro pela frente.

- Julio! Julio Guedes? Isto foi há três anos. Eu era uma idiota que não tinha a menor noção do que estava fazendo, isto não pode estar acontecendo!- Laura enfrentou o tapa no rosto, a mão da velha eram fracas demais para machucar, encarou os olhos frios com ódio.

- Julio Guedes. Meu filho tirou você das ruas , deu tudo que você pediu e sonhou, quis te dar uma vida decente. -A mulher acentuava o você, apontando o indicador para o rosto de Laura. - Você o deixou morrer sem socorro, naquele buraco cheio de drogados enquanto fugia com seu cafetão. E ainda foi ao enterro com a cara mais cínica do mundo. Se não fosse a idade, eu mesma te daria uma lição! – Neste momento Antonio aproximou-se e retirou a mãe da sala.

- Mas não entendo, seu nome é Viegas e não Guedes. Como eu poderia saber que era seu irmão? Por favor, pare com isso Antonio.

Laura começou a chorar e sentiu o corpo tremer de medo e frio. Havia conhecido Júlio em uma festa de um grande laboratório químico, imediatamente ela se informou com conhecidos e como era rico o bastante, terminaram a noite em um apartamento no melhor bairro da cidade.De repente lembrou que ele havia dito que os pais eram cirurgiões conceituados, da alta sociedade paulista e trabalhavam em um hospital famoso. Julio queria que ela freqüentasse bons lugares, brigavam porque Laura só se interessava por baladas e tomava qualquer porcaria alucinógena. Apaixonado e com dinheiro suficiente para bancar suas loucuras, Laura foi enredando Júlio completamente, arrastando-o para seu mundo podre.

Imediatamente Laura fez com que ele experimentasse as drogas que usava na época, induziu o consumo ao máximo e foi tirando o lucro com o traficante que também era seu amante. Laura havia colocado esta fase da vida em um lugar bem distante da memória, mas agora ela retornava com força total e não eram imagens bonitas. Havia sido totalmente egoísta quando Júlio começou a pressionar para que fosse somente dele, não acreditou nas ameaças de suicídio nem quando ele fez a última ligação pedindo ajuda. Usou os contatos e seu nome nunca foi relacionado ao rapaz, como a família havia descoberto o que ela havia feito era um completo mistério. Laura começou a gritar que precisava ir ao banheiro, depois chorou sentindo a urina escorrer pelas pernas nuas, o vestido leve de verão grudado de suor começou a exalar um odor acre. Ele a olhou com repulsa e com auxílio de uma tesoura arrancou as roupas sujas da mulher.

Laura sentia sede e o estomago vazio doía, uma risada nervosa escapou quando pensou nos chocolates que deixou de comer por causa de dietas. Calculou que estava sentada há pelo menos dez horas, havia perdido a noção do tempo e a única coisa que importava era encontrar uma forma de sair dali viva. Os olhos de Antonio eram duas bolas de fogo sem o menor resquício de emoção. Ele ficou algum tempo parado analisando o corpo da mulher, depois começou a traçar com uma caneta várias linhas e rabiscos. Laura não conseguiu gritar quando ele mas o horror aumentou quando ele saiu rapidamente da sala. Voltou minutos depois empurrando um carrinho com instrumentos de corte, facas, bisturis e outros que ela jamais havia imaginado ser possível construir:

- Você não sabia que Júlio era estudante de medicina? Queria ser cirurgião como nosso pai, mas infelizmente te conheceu e o final foi nojento. Seis meses e ele perdeu a vontade, a decência, os valores e finalmente a vida. Eu segui meu irmão nas noitadas, tentei de todas as formas tirar ele deste inferno, até mandei oferecer dinheiro pra você deixar o coitado em paz.

- Eu não aceitei. Lembro que um amigo dele quis me dar um cheque em branco, mas eu recusei porque gostava de Júlio. De verdade. Ele era viciado, nunca obriguei seu irmão a consumir nada. Ele era um maldito drogado! Que merda! – Antonio começou a socar a mulher com toda raiva, no início ela reagiu, depois Laura foi perdendo as forças e parou de gritar, chorar e passou a aceitar o castigo em silencio. Quando as mãos de Antonio pressionaram o pescoço frágil , sentiu-se quase aliviada porque o final pareceu próximo. A porta foi aberta de supetão pelo pai de Antonio que o arrastou para longe, Laura entorpecida pensou em salvação e resgate:

- Eu estou grávida! Eu estou grávida! Era isso que eu ia contar para sua família, seu idiota.- Laura começou a rir. Descontrolada soltava gargalhadas, depois começou a balbuciar coisas desconexas e palavrões.

- É mentira desta bruxa! E eu jamais ia querer ter um filho com ela. Pai vamos acabar logo com isso, o senhor prometeu que iríamos nos livrar desta vagabunda.
Laura sentiu uma picada no braço, em seguida a sala começou a rodar e a sensação era conhecida.

Finalmente ela relaxou. O pai de Antonio reclinou a cadeira ao máximo, imediatamente a esposa trouxe soro e eles cuidaram de Laura, coletaram sangue para exames e limparam os ferimentos. Em silencio trabalharam por algumas horas, quando terminaram removeram a moça para uma cama hospitalar.
Laura estava com o rosto enfaixado, a dor no maxilar era insuportável ela começou a gemer. Alguém checou seu pulso, um analgésico foi administrado e logo a dor diminuiu e ela voltou a dormir:

- Gostaria de ver esta mulher morta! – Antonio olhou o corpo da moça com desprezo. Apesar do ódio que nutria, em nada adiantaria pedir aos pais que a matassem. Era assunto encerrado, eles haviam decidido com muito cuidado cada passo e ele não podia interferir.

Antonio voltou para casa naquela noite, deixou Laura com os pais e iniciou a segunda parte do plano. No dia seguinte a firma de mudanças chegou cedo ao apartamento e em pouco tempo tudo que tinham foi encaixotado e levado para um depósito. No trabalho Antonio era o retrato da felicidade, animado com a transferência para o exterior, não escondia o entusiasmo e a todo momento recebia ligações da namorada. Em vinte dias partiria para a matriz, ocuparia um cargo superior e a promoção daria um novo impulso à sua carreira. Antes que a família de Laura a procurasse, Antonio marcou encontro com o sogro em um restaurante e entregou um pacote volumoso:

- O que significa isso Antonio? Porque minha filha não veio?

- Estamos de partida para Londres e não quero que vocês continuem explorando minha mulher. Aceite isso como um presente de despedida, estou sendo generoso até demais.- Ato contínuo, empurrou o envelope com cem mil reais.

- Quero falar com Laura, isto é ultrajante!- O homem discretamente conferia o dinheiro sob a toalha da mesa.

- Vai ser impossível, ela escolheu manter nosso relacionamento e a sua péssima reputação em nada contribui. O senhor é um homem sujo na praça, conhecido por seus golpes e cheio de dívidas de jogo. Use este dinheiro como quiser, mas não nos procure para pedir mais nada, é nossa última ajuda.

- Você tira vantagem por ser rico e faz o que quer, espero que minha esposa não adoeça com tanta ingratidão.

- Dê lembranças à sua esposa e em breve Laura enviará um email, quem sabe fotos da casa nova?

Antonio deixou o sogro falando sozinho, respirou o ar gelado enquanto caminhava pelas ruas e sentiu-se mais leve. Gesto automático ligou para os pais e conversaram em código, tudo corria bem e não havia com quê se preocupar. Em poucos minutos entrava no condomínio luxuoso e exclusivo. Na guarita um senhor cumprimentou:

- Boa noite senhor.- Antonio sorriu simpático e seguiu adiante.

A casa permaneceu intocada desde que ele partira, todos os pertences de Júlio estavam ali e com eles as melhores lembranças de Antonio.Não eram irmãos de sangue, os Guedes haviam adotado Antonio aos três meses, quando o encontraram doente e abandonado pela família. Foi assim que eles cresceram juntos, descobriram a vida e foram felizes até Laura aparecer. Antonio não entendeu a obsessão de Júlio e pararam de se falar, odiou a mulher que os separou e durante todo o tempo em que Julio e Laura ficaram juntos, eles os seguiu ou mandou vigiar. Tentou alertar Julio sobre Laura e não conseguiu, perdeu seu único amor, o melhor amigo e tudo que realmente o fazia feliz. E jurou se vingar, mesmo que custasse tudo que ele mais prezava, mesmo que ele tivesse que mentir e ser outra pessoa.



Londres


Ninguém imagina o quanto odeio Antonio e sua maldita família, detesto tudo e todos, inclusive a criança que fui obrigada a gerar. Deixei o Brasil e vim com Antonio e os pais dele sob ameaças, o tempo inteiro me vigiaram e tive uma gravidez péssima. Passei a gravidez deitada, trancada em um quarto e sendo examinada pelo pai de Antonio diariamente. Quando tentei fazer greve de fome, fui alimentada via sonda e amarrada. Preferi voltar a comer e ganhei uma televisão e um som. Daquele dia em diante aceitei que não conseguiria fugir, minha barriga pesava e sentia dores se tentasse caminhar. A cama confortável era a melhor opção, eu sentia sono o tempo inteiro e os dias passaram rápido.

Quando cheguei ao casarão torcia pelo dia da fotografia, era a única vez que saía para o jardim e outros aposentos da casa. Toda a família se reunia em várias poses, desde o início da gravidez foi assim, mês após mês fizemos fotos sorridentes em ocasiões forjadas. Normalmente eu aparecia sentada e eles se movimentam ao redor. Antonio e a mãe compravam vestidos de alta costura próprios para gestante, só me restava exibir um sorriso convincente e fazer cara de feliz. Naquela época minha única restrição era não fazer esforço, fora isso eu podia ler, dar pequenos passos e com ajuda da enfermeira tomava banho e me vestia.

Depois do nascimento de Julinho, perdi os movimentos e mal consigo articular uma simples sentença. Felizmente com a doença não precisei participar das malditas fotos, fiquei livre das gracinhas do bebê desconhecido. Acho que ele envia fotos da criança para minha família, que devem estar abismados com a beleza da propriedade e todo o resto. Antonio também manda algum dinheiro em meu nome para meu pai, ele sempre se gaba de ser muito esperto, mas eu quase consegui fugir durante a viagem, se não fosse a medicação contra enjôo que me deixou dopada, eu teria pedido socorro.

Não posso fazer nada, sou prisioneira do meu próprio corpo, durante o parto sofri um acidente vascular que me transformou em uma inválida. Fui obrigada a assinar alguns papéis para ter o bebê em casa, não sei como eles conseguiram consentimento com uma gestação tão complicada. O dinheiro compra tudo. Desconfio que meu acidente foi proposital, perdi a fala, pouco me movimento e passo os dias sob os cuidados de uma enfermeira sob supervisão da mãe de Antonio. Uma velha ruim, que me odeia e faz o possível e impossível para tornar minha existência pior. A única distração é a televisão e como não falo inglês, passo o tempo imaginando o que eles dizem. Antonio algumas vezes vem me ver, ele gosta de me torturar detalhando mil formas como gostaria de me matar, ele conta cada detalhe com a maior satisfação e eu não demonstro a menor emoção, depois choro e o amaldiçôo.

Desde que os pais dele vieram viver conosco por causa do neto, remoçaram e parecem felizes com o menino. Julinho é bonito e esperto, não sei se gostaria de pega-lo e beijar seus cabelos, sentir o cheirinho de bebê e ter meus direitos de mãe. Sempre penso que se esta criança não existisse eu estaria morta, o que seria muito melhor que a vida miserável que me obrigam. Nestas horas poderia jogar o bebê da janela mais alta desta casa nojenta, depois iria aos jornais e contaria minha historia sórdida e eles estariam acabados. Não tenho instintos maternais ou eles foram destruídos quando me prenderam nesta cama . Sinceramente eu não sei.

Quando Julinho estava com quase um ano, Antonio trouxe um médico para me examinar e eu pensei que fosse um especialista para me ajudar . Mais tarde vieram me contar que tudo não passou de encenação, era bom pedir uma segunda opinião para confirmar o tratamento do pai de Antônio. Minha imaginação correu solta e pensei em mil formas de vingança, desejo o tempo inteiro uma única chance de colocar as mãos em todos eles.
Antonio e o pai discutiam na biblioteca, afundados em sofás confortáveis de couro bebericando chá forte enquanto a lareira aquecia o ambiente:

- Pai. Por favor, não suporto conviver com ela. Para que tudo isto? Posso conhecer uma mulher muito melhor e ser feliz de verdade. Não entendem que minha vida está péssima? Quero me libertar deste pesadelo.- Antonio fechou os olhos. Estava verdadeiramente cansado.

- E o que sugere? Que eu a mate? Para todos ela sofreu um problema no parto, mas se descobrirem a verdade...

- Ela pode ter outro ataque fatal, sei lá mas nos livre desta coisa, pelo bem de Julinho que daqui a pouco vai começar a entender e fazer perguntas. Pai, o senhor não vai viver pra sempre, eu não sei o que fazer com Laura...

-Ouça, posso diminuir as doses da medicação e ela vai recuperar alguns movimentos, vamos simular um suicídio e tudo vai parecer aceitável. Induzimos o estado atual após o parto, foi fácil porque estávamos em casa e a enfermeira é tão inexperiente que a mantemos até hoje cuidando da megera. Eu mesmo continuei administrando os medicamentos e o tempo fez o resto, Laura hoje é mais doente que o desejado.

- Os pais de Laura podem desconfiar, vou gastar uma boa quantia para que nos deixem em paz.

- Já pensei nisto, por este motivo ela precisa de alguma melhora e depois como é vaidosa não vai querer viver desta forma. Laura está acabada, não consegue falar e mal fica de pé. Suicídio é muito plausível, vou chamar um bom fisioterapeuta e ela vai começar a fazer hidroterapia.

- Pai, lembra dos papéis que ela assinou para fazer o parto em casa?- Antonio serviu-se de mais chá e jogou um torrão de açúcar no liquido fumegante.
- Claro que sim, mas não quero pensar nisso agora. Ainda há muito pela frente e não vamos nos precipitar.

A piscina era enorme e Laura sentiu medo, agarrou os braços da cadeira de rodas com força e recusou ajuda para entrar na água quentinha. Antonio explicou que ela podia confiar no profissional, a enfermeira também estava ao lado dela, o que poderia acontecer com tanta gente ao redor? Laura era desconfiada e não aceitou, no dia seguinte Antonio trouxe um salva vidas e outra enfermeira.

Laura aos poucos se acalmou e permitiu que a tocassem, começaram muitas séries de exercícios onde os músculos foram trabalhados, após tanto tempo a moça sentiu dores e alguma esperança, antes não tinha qualquer reação. Sob vigilância dos pais de Antonio e da enfermeira, o profissional passava algum tempo com Laura na piscina, um dia trouxeram Julinho e ela brincou com o filho pela primeira vez.
Seis meses se passaram. Um pouco de paz apareceu no semblante da paciente e ela passou a sorrir com mais facilidade e tratar os pais de Júlio sem a ironia maldosa que eram sua marca. Laura fazia progressos, o fisioterapeuta e toda a equipe estavam exultantes. Feliz com os resultados ela começou a traçar muitos planos:

- Antonio, você poderia me levar para passear de carro? Queria tanto ver a cidade. – Não houve resposta, eles estavam na sala de estar tomando chá e assistindo as artes de Julinho.

Pela primeira vez os pais de Antonio a olharam com alguma simpatia, Laura sentiu que eles estavam amolecendo com o neto e seu próprio comportamento:

- Eu compreendo que não mereço, desculpe ter pedido.

- Laura, eu a levo para dar uma volta se Antonio concordar. – A mãe de Antonio sorriu, os homens suspiraram longamente e logo Laura estava sentada no banco do carona, pronta para seu passeio.

Foi a primeira de várias outras ocasiões em que eles passaram a incluir Laura. Pareciam estar aceitando com naturalidade que o tempo estava curando e as mágoas sendo gradativamente atenuadas. No aniversário de três anos de Julinho, Laura já movimentava a cadeira de rodas sozinha, um modelo adaptado com botões de controle, extremamente leve e fácil de manusear. Podia andar pela casa e usar o elevador para ir onde quisesse, desde que acompanhada pela enfermeira e a mãe de Antonio.
A firma contratada para a festa havia acabado de chegar com mesas, toldos e todo o aparato para montar.

Laura assistia da janela do quarto, naquele dia ela não poderia descer por causa dos convidados, Antonio não achava seguro e vetou sua presença. Desejou poder andar e assistir Julinho cantando parabéns, aprendeu durante o tempo em que passaram juntos a gostar do menino. Sentiu a raiva reascender novamente, eles não tinham o direito de fazer aquilo com a mãe do aniversariante, ponderou em voz alta e assustou-se. Ela estava falando, ela podia falar e eles não sabiam. Que grande trunfo tinha nas mãos.
Duas horas da manhã a casa dormia, Laura moveu as pernas lentamente e escorregou pelo colchão.
O corpo leve não fez qualquer ruído no tapete espesso, começou a rastejar por todo o quarto até a porta. Destrancada. Apoiou as costas contra a parede do hall e recuperou o fôlego, continuou a se movimentar mais rápido, parou na terceira porta e testou. Mal respirava quando entrou no quartinho azul, a babá dormia e o menino também. Laura sentiu raiva da mulher que passou toda a festa exibindo Julinho, tomando o lugar que era dela por direito, um pequeno punhal abriu a garganta da moça antes que ela pudesse esboçar qualquer ruído. Aproximou-se do berço e ficou de joelhos, puxou a ponta do cobertor e deparou-se com um boneco em tamanho natural. Completamente confusa, tentou gritar quando Antonio e os pais atravessaram o quarto em sua direção, com a mão em riste ela tentou atingi-los com a faca. Antonio a desarmou com facilidade, mesmo debatendo-se ele a carregou até a cadeira de rodas e tomaram o elevador. Antonio e os pais encaravam Laura friamente:

- Sabíamos que você não tinha cura, na primeira chance iria matar novamente. É seu instinto Laura, um instinto ruim. É uma assassina, pronta para matar o próprio filho.- Antonio a olhava com desprezo.

- Que filho? Nunca quis este filho, nem você queria nada disso. Seus pais te obrigaram, eu pelo menos sou sincera. – Encarou os velhos e sustentou.

- Laura, sabe que matar a babá e machucar o bebê foi um ato de loucura. Agora está tão arrependida que sua única saída é o suicídio.

- Suicídio? Eu ia matar todos vocês e contar o que fizeram comigo, com certeza não seria condenada. Aqui os monstros não sou eu. Hipócritas. – Antonio levou até a parte mais funda da piscina e Laura olhou seu reflexo na água azul claro. O cheiro de cloro tão querido nas sessões de hidroterapia, agora queimavam suas narinas.

Imediatamente a mãe de Antonio surgiu com Julinho nos braços, ele ainda dormia e ela começou a desenrolar as mantas da criança:

- Tem certeza que não vamos machucar o pobrezinho? Ele está tão quentinho.

- Vamos com isto mãe, coloca ele na borda da piscina e saia. Não tão próximo senão ele vai engatinhar para a água. – Antonio deu um único empurrão nas costas da cadeira.

Ela afundou rapidamente, as rodas tombaram de lado e Laura presa pelo cinto de segurança. Em silencio assistiram até que ela ficasse completamente imóvel. Os segundos pareceram longos demais para todos. Rapidamente deixaram o lugar e voltaram para seus quartos.
Julinho começou a chorar assustado com a escuridão, a criança não se moveu no chão frio e molhado. Ele gritou pela babá, o pai e os avós. As luzes da casa se acenderam, todos correram de um lado para o outro, a enfermeira gritou quando descobriu o corpo da babá e Antonio encontrou o filho na piscina com a ajuda da cozinheira. A policia chegou logo depois e o corpo de Laura foi resgatado, uma semana depois o funeral foi autorizado. Após investigações decidiram que Laura havia se suicidado após cometer o homicídio.
Os amigos apareceram para consolar Antonio, todos sabiam que a mulher sofria de depressão e seqüelas terríveis após o parto complicado:

- Ele estava tão animado com as melhoras de Laura, ela vinha respondendo tão bem à fisioterapia.

- Ela esperou ficar bem para se matar, é da doença eu vi em um programa na televisão. Ela matou a babá e não teve coragem de matar o filho.

- Ainda bem, senão Antonio enlouqueceria. Olhe como está mal, vamos cumprimentar os pais dele e expressar nossos sentimentos. – As duas colegas de escritório de Antonio seguiram caladas até o casal, a avó com o netinho no colo mal podia responder.

O final de Laura ocorreu com discrição, em seu testamento ela pediu para ser
cremada e deixou um seguro de vida em nome do filho e alguma coisa para os pais. Eles preferiram economizar e não compareceram, alegaram que ela havia sido uma filha tão boa, que com certeza compreenderia de onde estivesse.

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